Crónica da Alexandre Honrado || A Agonia

A AGONIA

Foi ideia de alguns sonhadores excecionais essa utopia das fragilidades e do imprevisível, resultante de paixões antigas e ânsias muito renovadoras e jovens, a que genericamente se chamou Democracia e que, por herança, recebemos tardiamente da mão fértil da democratização europeia, graças a um punhado de homens de elite que já eram europeus à moda nova antes de muitos outros.

Tratando-se de uma construção colectiva, como certas obras de grandeza maior – recorde-se aqueles aquedutos que beneficiavam todos e matavam a sede de povos merecedores que os pagaram e construíram não para si, nem para os seus filhos, mas para os seus netos, sabendo que só eles veriam a obra finalizada e a usariam- , essa nova Democracia desafiou territorialidades, manias velhas, egoísmos – e sem dúvida, o espaço exíguo em que se limitou teve a grandeza da profundidade dos alicerces que julgou-se ser, pelo menos num certo período, o grupo dos alicerces mais inabaláveis. Essa utopia defrontava muitas distopias – pois a velhice dos privilégios antigos nunca desarmou – mas engrandeceu-se com direitos humanos, dignidade, aceitação da diferença e da multiculturalidade, promovendo a cidadania, a integração, a recepção dos que necessitavam e ainda a interculturalidade, esta última a grande chama acesa capaz de orientar quem viesse do futuro. Era também ela, essa Democracia, a forma mais intensa de impedir a loucura dos nacionalismos, dos extremismos que tinham votado a Europa à morte, à destruição, à perseguição, aos limites das liberdades e da dignidade essencial, e que vieram envergonhar o mundo, com salazarismos, franquismos, fascismos, nazismos, comunismos e outras traições aos humanismos.

Sonhou-se a paz, com a Democracia, depois de um século assassino. E todavia ela não chegou. A violência, atributo dos fracos, retornou; proliferou uma e outra vez, dentro das casas, dentro das escolas, em travessas, ruas e becos apertados, em planícies e montanhas, em cenários de guerra e até em recintos desportivos. O exemplo ocidental escoou-se na ponta da espingarda, no pau brandido, na pedra projetada. Na mão que em punho arremessado encerra a vida e a abandona à indignidade.

À hora do massacre da Palestina e da sua leitura, que todos devíamos saber fazer, um bando criminoso atacava em Portugal um grupo de desportistas, reunidos num centro de estágio e a preparar um treino banal e sem violência…

 

Ainda há dias me convidaram para visitar o campo de concentração de Mauthausen-Gusen. A loucura humana sofre a amnésia da sua própria história.

Cada vez que brota o sangue de uma vítima, somos todos nós que morremos. Todos nós.

 

Alexandre Honrado

Historiador

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